terça-feira, 24 de setembro de 2013

O Telefonema - exercício proposto pela Oficina Literária


O TELEFONEMA

- Alô.
- Gata, estou atrapalhando?
- Claro que não. Fale. Eu já estava de saída do escritório, mas ainda tenho alguns minutinhos.
- Tesouro, estou indo ao clube com o Júnior para darmos um passeio. Queria tanto que você viesse com a gente... Vamos? Seria ótimo curtirmos esse finalzinho de tarde juntos. A gente sempre se diverte tanto nesses passeios...

A gente quem ? Pensou ela, franzindo a testa. A última ida ao clube, infelizmente, não continha nenhuma cena de diversão. Muito pelo contrário, as lembranças que permeavam o seu imaginário eram até grotescas; um homem com quase 100 quilos, fantasiado de tenista profissional, ensaiando raquetadas e voleios mil, como se Wimbledon fosse mesmo ali; enquanto ela, coitada, mão de obra não qualificada, corria, depois de um dia cheio de trabalho, atrás de Júnior, aquele pobre selvagem, ainda por cima, sobre um scarpin!

- Adoraria, disse ela sem muita empolgação e com uma certa ironia - mas preciso ir para casa e ajeitar umas coisas para a nossa viagem. E por falar em viagem, você ainda lembra que temos uma para a Itália semana que vem, não lembra? Sagazmente, aproveitou o ensejo para mudar de assunto.
- Ai princesa, claro que lembro. Quem ouve assim pensa que sou um namorado desinteressado, que dou pouca importância para os nossos combinados.
- Que bom! Espero que dessa vez nada aconteça, falou com delicadeza.
- Não entendi, linda. Parece até que a última vez que desmarcarmos a viagem foi por um infortúnio qualquer. Será que você não se recorda da maré de azar que vitimou o Júnior naquela mesma semana?
- Como esquecer? Foi o assunto mais falado por dias. A irritação dela já era latente. Ele, contudo, não percebia e continuava a justificar o injustificável.
- Pobre do meu garoto, tão sem sorte o coitado. Suspensão da escola e braço quebrado, tudo de uma só vez. Gastei tubos de dinheiro com psicólogo, quarto novo e viagem pra ele e a babá. Quase traumatizaram o menino! Lembra?
- Claro! Mas sem querer ser insistente, gostaria apenas que você entendesse, de uma vez por todas, que azar é acaso, algo que acontece independentemente da nossa vontade e para o qual não contribuímos. O que sucedeu com o Júnior não foi casualidade, tendo em vista que...
- Tendo em vista o quê, Raquel? Não estou entendendo esse seu papinho moralista a respeito de como devo criar o meu Júnior. Você não tem filhos, nem mesmo tem a maternidade remotamente em seus planos e agora vem ensinar padre-nosso a vigário, tenha santa paciência. Pra você, a vida se resume a processos, audiências e escritório. Nem sei como sobrou tempo para encaixar na sua agenda um namorado! Agradeça a Deus, eu ter aparecido na sua vida. Um homem como eu...

 - Êpa! Pode parar! Ela não poderia mais perder tempo com aquilo. O seu limite havia chegado ao fim e como se recém acordada de um pesadelo, continuou: - Já chega! Cansei dos seus rompantes de prepotência e arrogância. Agora você vai me ouvir!

- Mas Raquelzinha...
- Raquelzinha coisa nenhuma. Calado! Até onde lembro, Júnior quebrou o braço e foi suspenso da escola porque subiu na carteira para gritar com a professora. E isso, meu caro, não é azar é consequência.
- Mas Raquelzinha...
- Eu ainda não terminei. Ao contrário do que você pensa, seu filho não precisa de mais viagens, mais presentes ou mais mimos. Ele não tem que ser levado a acreditar que o mundo é seu algoz e que todos estão contra ele. Pare de tratá-lo como vítima! Júnior precisa somente de duas coisas: amor e limite, coisas básicas que pelo jeito, você não tem condições de dar, não é mesmo?
- Mas Raquelzinha...
- E antes que eu me esqueça, o fato deu não ter filhos não me desautoriza a falar sobre o assunto e outra, não falar em ter filhos, não quer dizer que eu não pense ou não deseje um. Apenas não achei adequado falarmos nisso com 3 meses de namoro; e, sendo ainda mais sincera, não vislumbrei em você os pré-requisitos básicos de um possível candidato. Pronto, falei!
- Agora você pegou pesado, Raquelzinha!
- E tem mais, diferentemente do que você pensa, filho não é passatempo, que a gente só pega quando quer ou tá afim, muito menos meio de inclusão e ascensão social. Filho é dedicação, envolvimento, compromisso, prioridade e detalhe, para o resto da vida, coisa muito séria, você consegue entender isso ou vou ter que desenhar?
- Mas Raquelzinha...
- Passar bem, Otávio Augusto!
- E o clube, Coração?

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